Pesquisas contribuem para elevar o padrão da cachaça de alambique

Bárbara Melo - 10-07-2025
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Destaque na produção e exportação do produto, Minas Gerais conta com um Centro de Referência para auxiliar os produtores.

Símbolo da cultura brasileira, a cachaça vem se consolidando como produto de excelência no mercado nacional e internacional. Os dados do Anuário da Cachaça de 2025, elaborado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), mostram que Minas Gerais é referência e responde por cerca de 50% da produção nacional. Por trás disso está o trabalho de pesquisa de décadas realizado na Universidade Federal de Lavras (Ufla) que busca valorizar essa bebida genuinamente brasileira.

De acordo com Maria das Graças Cardoso, coordenadora do Centro de Referência em Análise da Qualidade de Cachaça (CRAQC) da Universidade, tudo começou no final da década de 1990. A regulamentação da cachaça naquela época era precária e revelou a necessidade de se estudar os fatores que ajudavam e prejudicavam a bebida. O grande objetivo era fortalecer um dos principais produtos da agroindústria mineira por meio da aliança entre a ciência, tradição e inovação.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) esteve presentes em inúmeras dessas pesquisas sobre o tema, contabilizando mais de R$ 9,6 milhões em investimento ao longo de 10 anos. Ainda segundo dados do Anuário da Cachaça 2025, o Brasil possui hoje mais de 1.200 estabelecimentos produtores da bebida registrados. Minas Gerais é o estado com o maior número de alambiques legalizados. Os números mostram a força de um mercado em crescimento que precisa, cada vez mais, de qualificação técnica, padronização e segurança alimentar.

A equipe do CRAQC é composta pela coordenadora, técnicas e estudantes de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Créditos: Júlia Rodrigues/FAPEMIG

Onde a pesquisa encontra a sociedade

É neste ponto que os estudos do CRAQC se tornam estratégicos. O foco central das pesquisas é a análise da qualidade da aguardente e da cachaça, identificando contaminantes e atributos de melhoria. “A cachaça era feita com fermentações ao ar livre, com o caldo sendo exposto a restos de animais, bactérias e sujeira. Hoje, temos um entendimento completo sobre como evitar contaminantes e garantir a qualidade sensorial e sanitária da bebida”, conta Maria das Graças Cardoso. As pesquisas eram desenvolvidas em um laboratório no Instituto de Ciências Naturais da Ufla e seguiam os parâmetros estabelecidos pelo Mapa para atestar a qualidade do produto para comercialização

Ao longo dos anos, as pesquisas elucidaram a origem de diversos contaminantes da bebida, como o carbamato de etila, o cobre em excesso, o metanol e os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs). Os trabalhos geraram livros técnicos, teses, dissertações e artigos científicos, além da construção de um laboratório de referência em Lavras. “É um sonho de mais de 20 anos que conseguimos realizar. Hoje, temos equipamentos de ponta para cromatografia, espectrometria de massas e estamos finalizando a acreditação como laboratório referência para produtores de todo o Brasil”, comemora a professora.

O CRAQC é uma extensão da Universidade com a sociedade. Os trabalhos publicados embasam as análises realizadas no laboratório. De acordo com a técnica do Centro, Maria Luiza Teixeira, eles recebem os produtores tanto para analisar suas bebidas, quanto para realização de simpósios, cursos e conferências de boas práticas. São fabricantes de todo o Brasil e cachaças que apresentam características distintas dependendo de cada região.

Os produtores entram em contato por meio de telefone, whatsapp ou e-mail do laboratório e nos mandam uma amostra da bebida. Nós não melhoramos o produto, nós analisamos tanto os compostos que são benéficos quanto aqueles que podem ser tóxicos e emitimos um laudo atestando a qualidade, se aquela bebida pode ser comercializada ou não”, explica. A partir de então, os produtores são contactados e orientados para a adoção de boas práticas. 

Maria das Graças Cardoso é referência no Brasil e faz parte da Câmara Especial da Cachaça do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Créditos: Júlia Rodrigues

O Centro de Referência é um projeto apoiado pela FAPEMIG que recebeu o aporte de R$ 3,7 milhões para a sua implementação. “O laboratório era pequeno, nós analisávamos cerca de 100 amostras anualmente. Com a divulgação e a construção do Centro, as análises triplicaram. Nós conseguimos o remanejamento de mais uma técnica para nos ajudar nas análises e hoje conseguimos fazer simultaneamente cerca de 16 análises que ficam prontas em até 20 dias úteis”, conta Maria Luiza.

Aplicação do conhecimento

Além da pesquisa de excelência, a formação de recursos humanos é um dos pilares da atuação do CRAQC. Bolsistas de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos, desenvolvem seus projetos com a orientação de Maria das Graças e o apoio das técnicas, que também são doutoras. “O mais importante é que nossos alunos não aprendem apenas a parte analítica. Eles estão em contato direto com os produtores, com os desafios reais da produção e com uma cadeia produtiva que tem se sofisticado”, afirma a pesquisadora.

Maria Luiza e Mariana fazem as análises das cachaças de produtores de todo o Brasil e auxiliam os pesquisadores. Créditos: Júlia Rodrigues/FAPEMIG

As pesquisas continuam focadas na origem dos contaminantes, mas a criação do Centro possibilitou ainda o estudo de novas hipóteses com cachaças recém destiladas, envelhecidas em diferentes tipos de madeira, destiladas em diferentes tanques, entre outras questões que passeiam desde a produção até a comercialização. Mariana Bonésio, também técnica do laboratório, destaca a prática laboratorial como continuidade da formação acadêmica. “Nós somos químicas e, em nossas turmas da faculdade, não foram muitas pessoas que conseguiram ficar no ramo. Hoje, conseguimos aplicar o que aprendemos em sala de aula”.

O CRAQC também é referência para os estudantes que estão começando na área acadêmica. Isabelli Costa Bueno, que é uma das bolsistas de iniciação científica do laboratório e estudante de Engenharia Química, conta que a curiosidade a instigou a escolher a área. “A Engenharia Química é uma área muito grande, mas eu me interessei pelo laboratório e escolhi trabalhar com a análise físico-química da cachaça. É uma vertente bem grande e a gente nem imagina o quanto tem de pesquisa nessa linha”, conta.

Qualidade comprovada

Além de devolver à sociedade todo o investimento em pesquisas, o trabalho iniciado lá atras e que vem sendo aprimorado ao longo dos anos é visível para os produtores e para os estudantes. Os resultados têm sido significativos. Produtores locais relatam melhorias na higiene dos alambiques, na fermentação e no armazenamento da bebida. 

“Quando meu pai começou, ele percebeu que precisava de mais tecnologia e melhorias no trabalho, foi quando ele procurou a Universidade. Nas análises, eles detectaram que poderia melhorar a matéria prima e a destilação. Então esse trabalho com a Universidade não só aumentou a qualidade do nosso produto, mas manteve o padrão. Ajudou não só a nossa bebida, mas toda a cadeia produtiva da cachaça de alambique”, conta João Mendes, produtor do destilado de mesmo nome.

Maria das Graças sempre busca envolver os produtores em eventos científicos, como forma de reconhecer sua importância no processo. “Eles se sentem valorizados quando entram na Universidade e percebem que o trabalho deles tem impacto. Isso é devolver à sociedade o investimento feito na pesquisa”, resume.

A cachaça, hoje, “bebida genuinamente brasileira”, nas palavras da professora Graça, passa a ocupar o lugar de um produto legítimo, que expressa o território e o saber fazer mineiro. E se a bebida conquista mercados e premiações internacionais é porque, por trás de cada gole, há ciência, cuidado e, sobretudo, muita pesquisa feita por quem acredita na força da cultura nacional.

Os produtores têm contato direto com as técnicas e a coordenadora sempre que precisam. Créditos: Júlia Rodrigues